O Dzogchen na Tradição Bön
A sabedoria auto-surgida é a Base,
As cinco emoções negativas são a energia
manifesta,
Ver as emoções como erradas é um erro,
Deixá-las em sua natureza é o Caminho,
Para encontrar o estado não-dual da
liberação,
Superar a esperança e o medo é o Fruto.
Apesar
de haver praticantes de Dzogchen em todas as tradições religiosas tibetanas –
como o Quinto Dalai Lama da Escola Gelugpa, o Terceiro Rangjung Dorje da Escola
Kagyupa e Dragpa Gyaltsen da escola Sakyapa – as linhagens mais importantes do
Dzogchen são encontradas no Bom, a religião nativa do Tibet, e na Escola
Budista Tibetana Nyingmapa (a mais antiga). Ambas as tradições classificam o
seu ensinamento em nove caminhos de prática que conduzem à iluminação ou à
realização, e em ambas as classificações, o Dozgchen é o nono e mais elevado
caminho.
Nos
dias de hoje, mestres de todas as escolas tibetanas têm começado a ensinar
Dzogchen e parece que ele está se tornando um tipo de moda no Ocidente.
O Dzogchen
Dzogchen (Tib. rdzogs Chen) significa literalmente “perfeição”, “realização” ou
“completude” (tib. Rdzogs) que é
“completa” ou “grande” (tib. Chen).
Apesar de o Dzogchen ser a “grande esfera única”, por conveniência ele é
descrito como possuidor dos três aspectos da Base, Caminho e Fruto: Base –
porque o solo do Dzogchen é o estado primordial do indivíduo, Caminho – porque
o Dzogchen é o supremo caminho direto e imediato para a realização, e Fruto - -
porque o Dzogchen é a consumação da iluminação, a liberação em uma única vida
do ciclo da ilusória transmigração samsárica.
A
fim de compreender melhor o Dzogchen, vamos olhar mais para a divisão em Base,
Caminho e Fruto.
De
acordo com o ensinamento do Dzogchen, a Essência da Base de tudo é vazia e
primordialmente pura; a Natureza da Base é a claridade que é espontaneamente
perfeita; a união inseparável da Essência primordialmente pura e da Natureza
espontaneamente perfeita é o fluxo não – obstruído da Energia ou da Compaixão.
Na mente individual, esta Base é o estado natural, e é a fonte do Samsara para
a mente iludida (tib. Ma rig PA) e a
fonte de Nirvana para a mente na qual o conhecimento (tib. Rig pa) está desperto.
A
essência da Base, ou Kunshi (tib. Kun zhi) é chamada de Mãe (tib. Ma); a consciência desperta (tib. Rigpa) é chamada de Filho (tib. Bu); e a inseparabilidade da mãe e do
filho é o fluxo de Energia (tib. Tsal).
O
Caminho é constituído de se ganhara insight na Visão no Dzogchen – que é o
conhecimento da condição verdadeira da Base do indivíduo – e de se fazer o
fluxo de Rigpa – cultivado através da Meditação – ser contínuo no período a
pós-meditação, para que ele seja integrado em nosso Comportamento, ou Atitude,
e nas atividades da vida cotidiana.
O
Fruto é a realização nesta vida dos três Kayas inerentes e culmina com o
alcance do corpo de arco – íris, ou corpo de luz, no momento da morte, no qual
o corpo material não deixa restos mortais, mas sim se dissolve em sal natureza,
que é a Luz.
O Dzogchen no Contexto da Prática Espiritual Bön
O
Dzogchen é a mais alta tradição espiritual no Bom. No passado, os praticantes
que conheciam e praticavam o Dzogchen no Tibet eram poucos, mesmo dentro das
tradições Bom e Nyingma. Um motivo para isto é que não era fácil receber estes
ensinamentos; eles eram mantidos de forma muito secreta, poucos mestres os
davam e para poucos estudantes. Mesmo nos dias de hoje, os adeptos leigos do
Bom no Tibet geralmente passam bastante tempo realizando as nove práticas
preliminares (tib. ngöndro / sngon’gro)
e o p’howa, enquanto os monges que permanecem nos monastérios engajam-se
principalmente no estudo intelectual e filosófico, no debate e na recitação de
textos rituais e litúrgicos.
Muitos
mestres insistem (e muitos mestres agora continuam a insistir) que os
praticantes devem completar as práticas de ngöndro antes de serem dados os
ensinamentos do Dzogchen. Estas práticas preliminares são descritas no Nyamgyü Gyalwe Chagtri (tib. Nyams rgyal ba’i phyag krid). Cada uma
destas nove práticas deve ser realizada cem mil vezes. As nove práticas são:
1.
Geração de
compaixão por todos os seres sencientes;
2.
Tomada de
Refúgio;
3.
Oferenda de
Mandala;
4.
Meditação
sobre a Impermanência;
5.
Confissão
das transgressões;
6.
Prostrações;
7.
Guru Yoga,
fundir a própria mente com a mente iluminada do mestre visualizado à frente;
8.
Oferenda de
Preces;
9.
9.
Recebimento de Bênçãos.
Entretanto,
quando recebi o ensinamento do Shangshung Nyamgyü, Lopön Sangye Tenzin afirmou
que nos tempos antigos pode ter sido adequado manter o ensinamento do Dzogchen
em segredo, porém em nossos tempos problemáticos é melhor dá-los mais aberta e
livremente (mas sem diminuir seu valor neste caminho), pois de outro modo há o
perigo de que ele desapareça.
O Dzogchen no Bön
e no Nyingma
Vimos
que o Dzogchen é comum ao Bön e ao Budismo Nyingmapa, e que estas duas
tradições espirituais também têm em comum uma divisão de seus caminhos ou modos
de observância religiosa em nove partes. Entretanto, há diferenças maiores
entre as respectivas divisões nos nove caminhos dos Bönpos e dos Nyingmapas. É importante notar que há seis, e não nove,
graus de prática nas outras escolas budistas tibetanas – Kagyüpa, Sakyapa e
Gelugpa – que, aderem à nova tradição de traduções posteriores do cânone
budista, tomadas durante a segunda difusão do Budismo no Tibet durante os
séculos X e XI. Os nove caminhos dos budistas são compostos apenas pelo
material budista tradicional e, falando estritamente (como Professor Snellgrove
apontou) os dois caminhos inferiores - pertencentes ao Budismo Hinayana – são
praticamente irrelevantes às práticas religiosas budistas tibetanas, que são
baseadas no Budismo Mahayana.
Assim
como as práticas de origem budista, os nove caminhos dos Bönpos compreendem o compasso inteiro dos costumes, crenças e
práticas religiosas indígenas dos tibetanos, incluindo ciência médica,
astrologia, cosmologia, sortilégios e predições, pacificação e exorcismo de
poderosos maus espíritos e fantasmas, ritos para a prosperidade e ritos
tântricos para destruição de inimigos, resgate e ajudo para os mortos,
disciplina moral para os praticantes leigos e monásticos, práticas e ritos
tântricos, hagiografia, e o mais elevado caminho espiritual do Dzogchen. Quanto
a este respeito, o Bön pode ser dito como sendo a verdadeira religião do Tibet,
abraçando tanto as observâncias religiosas autóctones quanto as importadas.
Há
também muitos pontos em comum entre o Bön e o Budismo Nyingmapa. Como foi
notado, ambos mantém e propagam de modo oficial a transmissão dos ensinamentos
do Dzogchen, que são encontrados apenas esporadicamente em dotados praticantes
individuais das outras tradições que não têm linhagens específicas de mestres
de Dzogchen. Ambos veneram Küntuzangpo (sânsc. Samanthabhadra) como o supremo Adibuddha Primordial, enquanto que
as outras escolas do budismo tibetano veneram Vajradhara como o Adibuddha, e
ambos têm uma tradição de termas - tesouros
espirituais escondidos e, redescobertos por tertöns
(personagens profetizados a revelar o terma em tempos propícios). De fato,
muitos tertöns famosos pertenciam a
ambas as tradições.
Além
disso, os Nyingmapas são os únicos budistas tibetanos que reconhecem
abertamente como budistas os ensinamentos de origem não-indiana que foram
propagados durante a primeira introdução do Budismo no Tibet, durante o reinado
de Songtsen Gampo, e posteriormente no século VIII pelo carismático mestre
Padmasambhava e seus associados. Estes ensinamentos incluem correntes de
ensinamento budista vindos da China e da Ásia Central, assim como da Índia. Na
segunda difusão do Budismo no Tibet, nos séculos X e XI, todos os ensinamentos
budistas dos quais uma origem indiana não pode ser identificada foram excluídos
do cânone budista apresentado como oficial pelas outras três escolas
posteriores do Budismo Tibetano. Os Bönpos
afirmam que o Buddha Shakyamuni foi um discípulo de Tönpa Shenrab Miwoche e que
todos os ensinamentos budistas, originados na Índia ou em qualquer outro lugar,
são de fato ensinamentos do Bön eterno.
As Três Correntes de Dzogchen no Bön
No
Bön, o Dzogchen tem sido tradicionalmente dividido em três correntes conhecidas
coletivamente como A-Dzog-Nyangyü (tib.
A rdzogs snyan rgyud), isto é,
Ath’ri, Dzogchen e Shangshung Nyangyü. As duas primeiras são tradições de
terma, baseados em textos redescobertos, enquanto a terceira é uma tradição
oral baseada na transmissão contínua por uma linhagem ininterrupta de mestres.
O
sistema Ath’ri foi fundado no século XI pelo Dampa (Homem Sagrado) Meu Gongje
Ritro Chenpo (1038-1096), que extraiu os ensinamentos originais do ciclo de
ensinamentos Th’rogyu (tib. Khro rgyud)
de Tonpa Shenrab.
Literalmente,
Ath’ri significa “Guia do A”. A letra A representa o estado primordial não-condicionado,
o estado natural da mente; ela é branca para representar a pureza inata da
mente. O praticante se engaja na prática da meditação estabilizadorqa (tib. Shine / zhi nas), começando com a
fixação na letra tibetana A para focalizar a concentarção, a fim de desenvolver
insight e experiência no estado natural da mente. Isto corresponde à série
Semde do ensinamento de Dzogchen da tradição budista Nyingmapa, conectada com a
mente.
O
nome Dzogchen dado à segunda corrente não se refere ao Dzogchen em seu
significado geral, mas denota um tipo particular de ensinamento Dzogchen com
sal própria linhagem específica. Este sistema corresponde à série Longde no Dzogchen
Nyingmapa, conectada com a claridade e o espaço.
A
terceira corrente é composta pelos ensinamentos de Dzogchen do Shangshung
Nyangyu, a Transmissão Oral de Shangshung, a mais antiga e importante tradição
e sistema de meditação Dzogchen no Bön. Esta série de ensinamentos foi
sistematizada pelo mestre Gyerpung Nangsher Lopo de Shangshung, que os recebeu
de seu mestre Tapihritsa no século VIII. Entretanto, estes ensinamentos não
foram compostos por seu fundador humano, eles não são fabricados pelos
pensamentos, mas são auto-originados. Eles têm desfrutado de uma transmissão
contínua por uma “linhagem longa” através dos séculos e nunca teve de ser
escondida e redescoberta como um terma, que tem uma tradição curta ou direta no
tempo de sua revelação. Esta corrente de ensinamentos corresponde à série
Upadesha no Dzogchen Nyingmapa, a série de instruções secretas.
Apesar
de todas as três correntes de Dzogchen terem suas próprias práticas
preliminares e linhagens de mestres de transmissão, a essência e o objetivo de
todas as três é a mesma: a introdução ao estado natural do Dzogchen. Alguns
mestres de linhagem mantêm todas as três transmissões. No Tibet, esta
transmissão de mestre para discípulo, que por sua vez se torna o mestre que
transmite o ensinamento ao seu próprio discípulo, é chamada “quente” porque a
transmissão da experiência direta a protege e então ela se mantém viva, sem se
tornar algo frio e meramente intelectual, derivada dos livros e do pensamento
conceitual.
Por Lama
Tenzin Wangyal Rinpoche
Lama Tenzin Wangyal Rinpoche é um
mestre de meditação Dzogchen. Desde os treze anos, ele tem praticado com
mestres das escolas Bön e budistas. Rinpoche compeltou um curso de onze anos de
estudos tradicionais no Centro Monástico Bön em Dolanji, Índia, sendo
qualificado com um doutorado (Geshe). Ele também é um erudito nas tradições Bönpo
e budista de filosofia, exegese e debate. Após sua graduação em 1986, Rinpoche
passou a trabalhar na Library Of Tibetan Works and Archives em Dharamsala,
Índia. No mesmo ano, foi apontado por SS Dalai Lama como representante da
Escola Bön na assembléia de deputados do governo tibetano no exílio.
Lama Tenzin Wangyal Rinpoche foi
o primeiro a trazer ensinamentos do Dzogchen da tradição Bön ao Ocidente em
1988, quando foi convidado por Chogyal Namkhai Norbu Rinpoche a ensinar em seu
centro na Itália. Ele é um dos poucos Lamas Bönpo que vive no Ocidente, onde
tem viajado e ensinado pelos últimos dez anos. http://www.ligmincha.org