Os Véus do Ego
Matthieu Ricard
Monge
Budista Theravada
Primeiro, concebemos o “eu” e nos apegamos a
ele.
Depois concebemos o “meu” e nos apegamos ao
mundo material.
Como água cativa na roda do moinho,
Giramos em círculos, impotentes.
Presto homenagem à compaixão que envolve
todos os seres.
Chandrakirti
A confusão
mental é um véu que nos impede de ver claramente a realidade, obscurecendo a
nossa compreensão da verdadeira natureza das coisas. Na prática, essa confusão
nos incapacita de identificar o comportamento que nos permita encontrar a
felicidade e evitar o sofrimento. Quando olhamos para fora, solidificamos o
mundo, projetando nele atributos que de modo algum lhes são inerentes. Ao olhar
para dentro, congelamos o fluxo de consciência quando concebemos um “eu”
entronizado entre um passado que não existe mais e um futuro que ainda não
existe. Acreditamos que vemos as coisas como elas são e quase nunca colocamos
em dúvida essa opinião. Atribuímos qualidades às coisas e pessoas e acreditamos
que são intrínsecas a elas, pensando “isto é bonito, isto é feio”, sem nos
darmos conta de que a nossa mente confere esses atributos àquilo que
percebemos.
Dividimos o
mundo inteiro em “desejável” e “indesejável”; atribuímos permanência ao que é
efêmero e vemos entidades independentes naquilo que é uma rede de revelações
que se transformam. Tendemos a isolar aspectos particulares de eventos,
situações e pessoas, focalizando apenas essas particularidades. É assim que
rotulamos os outros como ”inimigos”, “bons”, “maus” e assim, por diante, e
consideramos essas atribuições permanentes. No entanto, se avaliarmos bem a
realidade, essa complexidade se torna óbvia.
Se uma coisa
fosse verdadeiramente bela e agradável, se essas qualidades de fato
pertencessem a ela, nós a veríamos como desejável em todos os momentos e
lugares. Mas existe algo neste mundo que seja considerado belo por todos? Como
diz o verso budista: “Para aquele que ama, a bela mulher é objeto de desejo;
para o eremita, é uma tentação; para o lobo, uma refeição”. Da mesma forma, se
um objeto fosse intrinsecamente repulsivo, todos teriam uma boa razão para
evitá-lo. Mas tudo muda se reconhecermos que estamos apenas atribuindo essas
qualidades às coisas e pessoas. Não há, em um belo objeto, nenhuma qualidade intrínseca
que o torne benéfico para a mente, assim como também não há nada em um objeto
feio que, por causa dessa qualidade, cause dano a ela.
Do mesmo
modo, uma pessoa que hoje percebemos como inimigo com toda a certeza é, para
outro, objeto de afeição, e poderemos um dia criar laços de amizade com esse
mesmíssimo indivíduo. Reagimos como se as características fossem inseparáveis
da pessoa e do objeto sobre os quais as depositamos. Assim, distanciamo-nos da
realidade e somos arrastados pelo mecanismo de atração e repulsão, mantido em
constante movimento por nossas projeções mentais. Nossos conceitos congelam as
coisas em entidades artificiais, fazendo-nos perder nossa liberdade anterior,
do mesmo modo que a ajuda perde sua fluidez quando se torna gelo.
A cristalização do EGO
O Budismo
define a confusão mental como o véu que nos impede de ter uma percepção clara
da realidade e obscurecer a compreensão da verdadeira natureza das coisas. É
também, no plano prático, a incapacidade de discernir os comportamentos que
permitem encontrar a felicidade e evitar o sofrimento. Entre os muitos aspectos
dessa confusão, o mais radicalmente perturbador é aquele que consiste em se
apegar à noção de uma identidade pessoal: o ego.
O Budismo
faz distinção entre um “eu” inato e instintivo – quando pensamos, por exemplo,
“eu estou acordado” ou “eu sinto frio” – um ego com conceitual, moldado pela
força do hábito. Atribuímos várias qualidades ao ego pressupondo que ele seja o
núcleo do nosso ser, autônomo e duradouro.
A todo o
momento, do nascimento à morte, o corpo passa por transformações incessantes, e
a mente se torna palco de incontáveis experiências emocionais e conceituais. E,
no entanto, nós insistimos em atribuir ao nosso ego qualidades de permanência,
unicidade e autonomia. Mais ainda,
quando começamos a sentir que esse ego é vulnerável e precisa ser
protegido e satisfeito, entram em cena o binômio aversão/atração – aversão por
tudo o que o ameaça e atração por tudo que o agrada, conforta, aumenta a sua
confiança ou faz com que se sinta bem. Esses dois sentimentos básicos, atração
e repulsão, são as fontes de mar de emoções conflitivas.
O ego
escreve o filosofo Budista Han de Wit, “é também uma reação afetiva ao nosso
campo de experiência, um movimento mental de recuo baseado no medo”. Por medo
do mundo e dos outros, por receio de sofrer, por angustia sobre o viver e o
morrer, imaginamos que ao nos escondermos dentro de uma bolha – o ego –
estaremos protegidos. Criamos, assim, a ilusão de estarmos separados do mundo,
acreditando que dessa forma evitaremos o sofrimento. Na realidade, o que
acontece nesse caso é justamente o contrário, uma vez que o apego ao ego e à
auto - importância são os melhores ímãs para atrair o sofrimento.
O genuíno
destemor surge com a confiança de que seremos capazes de reunir os recursos
interiores necessários para lidar com
qualquer situação que surja à nossa
frente. Isso é totalmente diferente de retirar-se na auto – absorção, uma
reação ao medo que perpetua profundos sentimentos de insegurança.
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