sábado, 23 de março de 2013



Os Véus do Ego
Matthieu Ricard
Monge Budista Theravada

Primeiro, concebemos o “eu” e nos apegamos a ele.
Depois concebemos o “meu” e nos apegamos ao mundo material.
Como água cativa na roda do moinho,
Giramos em círculos, impotentes.
Presto homenagem à compaixão que envolve todos os seres.
Chandrakirti

A confusão mental é um véu que nos impede de ver claramente a realidade, obscurecendo a nossa compreensão da verdadeira natureza das coisas. Na prática, essa confusão nos incapacita de identificar o comportamento que nos permita encontrar a felicidade e evitar o sofrimento. Quando olhamos para fora, solidificamos o mundo, projetando nele atributos que de modo algum lhes são inerentes. Ao olhar para dentro, congelamos o fluxo de consciência quando concebemos um “eu” entronizado entre um passado que não existe mais e um futuro que ainda não existe. Acreditamos que vemos as coisas como elas são e quase nunca colocamos em dúvida essa opinião. Atribuímos qualidades às coisas e pessoas e acreditamos que são intrínsecas a elas, pensando “isto é bonito, isto é feio”, sem nos darmos conta de que a nossa mente confere esses atributos àquilo que percebemos.

Dividimos o mundo inteiro em “desejável” e “indesejável”; atribuímos permanência ao que é efêmero e vemos entidades independentes naquilo que é uma rede de revelações que se transformam. Tendemos a isolar aspectos particulares de eventos, situações e pessoas, focalizando apenas essas particularidades. É assim que rotulamos os outros como ”inimigos”, “bons”, “maus” e assim, por diante, e consideramos essas atribuições permanentes. No entanto, se avaliarmos bem a realidade, essa complexidade se torna óbvia.

Se uma coisa fosse verdadeiramente bela e agradável, se essas qualidades de fato pertencessem a ela, nós a veríamos como desejável em todos os momentos e lugares. Mas existe algo neste mundo que seja considerado belo por todos? Como diz o verso budista: “Para aquele que ama, a bela mulher é objeto de desejo; para o eremita, é uma tentação; para o lobo, uma refeição”. Da mesma forma, se um objeto fosse intrinsecamente repulsivo, todos teriam uma boa razão para evitá-lo. Mas tudo muda se reconhecermos que estamos apenas atribuindo essas qualidades às coisas e pessoas. Não há, em um belo objeto, nenhuma qualidade intrínseca que o torne benéfico para a mente, assim como também não há nada em um objeto feio que, por causa dessa qualidade, cause dano a ela.

Do mesmo modo, uma pessoa que hoje percebemos como inimigo com toda a certeza é, para outro, objeto de afeição, e poderemos um dia criar laços de amizade com esse mesmíssimo indivíduo. Reagimos como se as características fossem inseparáveis da pessoa e do objeto sobre os quais as depositamos. Assim, distanciamo-nos da realidade e somos arrastados pelo mecanismo de atração e repulsão, mantido em constante movimento por nossas projeções mentais. Nossos conceitos congelam as coisas em entidades artificiais, fazendo-nos perder nossa liberdade anterior, do mesmo modo que a ajuda perde sua fluidez quando se torna gelo.

A cristalização do EGO

O Budismo define a confusão mental como o véu que nos impede de ter uma percepção clara da realidade e obscurecer a compreensão da verdadeira natureza das coisas. É também, no plano prático, a incapacidade de discernir os comportamentos que permitem encontrar a felicidade e evitar o sofrimento. Entre os muitos aspectos dessa confusão, o mais radicalmente perturbador é aquele que consiste em se apegar à noção de uma identidade pessoal: o ego.

O Budismo faz distinção entre um “eu” inato e instintivo – quando pensamos, por exemplo, “eu estou acordado” ou “eu sinto frio” – um ego com conceitual, moldado pela força do hábito. Atribuímos várias qualidades ao ego pressupondo que ele seja o núcleo do nosso ser, autônomo e duradouro.

A todo o momento, do nascimento à morte, o corpo passa por transformações incessantes, e a mente se torna palco de incontáveis experiências emocionais e conceituais. E, no entanto, nós insistimos em atribuir ao nosso ego qualidades de permanência, unicidade e autonomia. Mais ainda,  quando começamos a sentir que esse ego é vulnerável e precisa ser protegido e satisfeito, entram em cena o binômio aversão/atração – aversão por tudo o que o ameaça e atração por tudo que o agrada, conforta, aumenta a sua confiança ou faz com que se sinta bem. Esses dois sentimentos básicos, atração e repulsão, são as fontes de mar de emoções conflitivas.

O ego escreve o filosofo Budista Han de Wit, “é também uma reação afetiva ao nosso campo de experiência, um movimento mental de recuo baseado no medo”. Por medo do mundo e dos outros, por receio de sofrer, por angustia sobre o viver e o morrer, imaginamos que ao nos escondermos dentro de uma bolha – o ego – estaremos protegidos. Criamos, assim, a ilusão de estarmos separados do mundo, acreditando que dessa forma evitaremos o sofrimento. Na realidade, o que acontece nesse caso é justamente o contrário, uma vez que o apego ao ego e à auto - importância são os melhores ímãs para atrair o sofrimento.

O genuíno destemor surge com a confiança de que seremos capazes de reunir os recursos interiores  necessários para lidar com qualquer  situação que surja à nossa frente. Isso é totalmente diferente de retirar-se na auto – absorção, uma reação ao medo que perpetua profundos sentimentos de insegurança.

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