Os princípios do Zazen
do Mestre Dogen
Texto extraído de “O Anel do Caminho”
tradução de Taise Deshimaru
Deveis abandonar a prática fundada no
conhecimento intelectual, correndo atrás das palavras e atendo-vos à letra.
Deveis aprender a meia – volta que dirige a vossa luz para o interior, para
iluminar-vos a verdadeira natureza. O corpo e o espírito se apagarão por si mesmos e o vosso verdadeiro
rosto aparecerá. Se quiserdes atingir a ipseidade, devereis praticá-la sem
tardança.
Para o Zazen, convém um aposento silencioso.
Comei e bebei com sobriedade. Não penseis: isso está bem, isso está mal. Não
tomeis partido, nem a favor nem contra. Suspendei todos os movimentos do
espírito consciente. Não julgueis pensamentos e perspectivas. Não alimenteis
desejo algum de tornar – vos um Budha. Zazen não tem absolutamente nada que ver
com a posição sentada ou com a posição deitada.
No lugar em que tendes o costume de sentar –
vos, estendei uma esteira grossa e colocai uma almofada em cima. Sentai – vos
na posição de lótus (Padmasana) ou de meio – lótus. Na posição de lótus,
colocai primeiro o pé direito sobre a coxa esquerda, depois o pé esquerdo sobre
a coxa direita. Na posição de meio – lótus, contentai – vos em colocar o pé
esquerdo contra a coxa direita.
Não vos esqueçais de desapertar as roupas e o
cinto, arrumai – vos convenientemente. Em seguida, colocai a mão direita sobre
a perna esquerda e a mão esquerda, virada para o alto, sobre a direita; as
extremidades dos polegares se tocam.
Sentai – vos bem aprumado, na atitude
corporal correta, nem inclinado para a esquerda, nem inclinado para a direita,
nem para frente, nem para trás. Certificai – vos de que as orelhas estão no
mesmo plano dos ombros e que o nariz se acha na mesma linha vertical do umbigo.
Empurrai a língua para frente, contra o
platô; a boca está fechada, os dentes se tocam. Os olhos devem permanecer
sempre abertos, e deveis respirar suavemente pelo nariz. Quando tiverdes
assumido a postura correta, respirai profundamente uma vez, inspirai e expirai.
Inclinai o corpo para a direita e para a esquerda, e imobilizai – vos numa
posição sentada estável.
O Zen está além de todo e qualquer dualismo;
por sua simplicidade, dá acesso ao estado absoluto de sabedoria; e é aqui que a
significação do Zazen assume toda a força: Shikantaza, apenas sentar-se,
sentar-se e mais nada.
O Zen é a filosofia da gratuidade, do não –
lucro; cada qual trabalha, na vida, para uma finalidade, por uma idéia, com um
objetivo; cada qual quer dar e receber, mas só se atinge a vida espiritual mais
alta do homem quando não há busca de lucro nem medo de perda.
Conservem as mãos abertas, toda a areia do
deserto passará por entre elas; fechai – as e não conseguireis senão alguns
grãos. A menor noção de guardar, de permanecer na consciência, é um obstáculo.
A harmonia com o sistema cósmico é o abandono de tudo. Somos unidade e
recebemos então a energia do cosmo.
Tudo indica que a educação baseada unicamente
no conhecimento intelectual, nas religiões e morais tradicionais já não são
capazes de fornecer soluções. Angustiados, desorientados, desequilibrados, os
homens fogem, buscando os prazeres momentâneos e a facilidade, e assim se
apartam da essência espiritual e do verdadeiro sentido da humanidade. As
contradições e insatisfações são numerosas, rompeu – se o equilíbrio natural
dos humanos porque eles já não sabem viver na condição normal do corpo e do
espírito.
Estudar o
Caminho do Budha é estudar – se a si – mesmo. Estudar –se a si – mesmo é
esquecer –se de si – mesmo. Esquecer – se de si – mesmo é estar identificado
com todas as existências do cosmos.
Estar
identificado com todas as existências do cosmo é despojar – se do corpo e da
mente. Despojar – se do corpo e da mente é despojar - se do seu eu.
Qual é a essência de todas as religiões, de
todas as filosofias? Compreender – se a si – mesmo. Não uma compreensão lograda
unicamente através da imaginação, da parte frontal, intelectual do cérebro, mas
uma compreensão lograda através do corpo. Vivemos graças à energia do cosmos. Durante
o Zazen, nossa consciência e nosso corpo se harmonizam com o sistema cósmico,
graças à respiração, aos cinco sentidos e à consciência, que se acalmam, perdem
as ansiedades, os temores, natural, automática, inconscientemente. É a
verdadeira religião.
Essa postura exata influi na consciência, nas
sensações, nos pensamentos. Zazen é a volta às condições normais, à saúde do
corpo. Será difícil associar ao Zazen um corpo em mau estado. Zazen é o
barômetro da saúde e da mente.
As doenças aparecem sempre a partir das
deformações do corpo e da mente. Graças à postura do Zazen localizamos nossas
deformações e nossos pontos fracos. Zazen significa olhar para nós mesmos,
compreender o nosso ego, o nosso karma e os maus hábitos do corpo e da mente.
Quando praticardes o Zazen mantém de uma psotura justa. Do inconsciente surgem
desejos e pensamentos. Assim podeis observar – vos a vós mesmos. Se sentirdes
pontos dolorosos pelo corpo ou mesmo um desequilíbrio entre o lado direito e o
lado esquerdo, essa deformação pode vir a ser a causa de uma futura doença.
Quase todas as religiões procuram o controle
por meio do espiritual. Mas se quiserdes controlar o espírito pelo espírito
complicar-nos-emos. Querer controlar o espírito pela vontade é como querer
apagar o fogo com o fogo.
A educação Zen não é cientifica. A educação
Zen está além da ciência, além da filosofia. O pensamento Zen pratica-se com o
corpo. E inclui as contradições. No Zen, não pensamos no problema da existência
ou da não – existência de uma substancia. Propomos os problemas seguintes: Que
fazer? |Como existir aqui e agora?
Dizia Mestre Kodo Sawaki que conduzir a nossa
vida é como andar de bicicleta. Uma boa prática faz – se necessária. Se o corpo
e o cérebro estiverem rígidos, não poderemos conduzir; não poderemos vencer a
dificuldade. É preciso pedalar sem parar. Se não pedalarmos, não avançaremos,
se executarmos uma manobra errada, cairemos.
Precisamos utilizar o cérebro co mo
utilizamos a bicicleta. Agora, agir de tal maneira, cada momento é diferente. O
aqui e o agora diferem a cada instante, como o tempo que passa. Por isso mesmo,
o cérebro não deve permanecer unilateral. Se só decidirmos segundo nossas
próprias categorias, o cérebro não evoluirá e não poderemos criar sabedoria.
Da pergunta: Como somos? Devemos passar à
pergunta: Como devemos ser em nossa vida real? Nesse momento, a alta verdade da
prática da fé e da religião pode assumir numerosas dimensões.
É de suma importância entrar na prática e na
experiência. No Zen, devemos rejeitar até os juízos sobre o bem e o mal. O bem
e o mal não são mais que o verso e o reverso da mesma medalha. Se nos apegarmos
a um juízo, ele se fixará e assumirá uma substancia própria. Por isso mesmo, no
Zen, não fazemos senão negar, sem parar, todas as coisas.
O Caminho do Meio, é o fato de se controlar,
de equilibrar – se.
Nas religiões modernas, só nos concentramos
nos ensinamentos, nos Sutras, no estudo, na teologia. Esquecemos a prática,
assim como a fé. Daí, que o ensinamento sem a prática e sem a fé não pode dar
alugar ao despertar. No interior do espírito das pessoas, as vagas e o vento
estão sempre em movimento.
O ser humano cria suas próprias ilusões. A
perseguição às sombras da consciência engendra a ilusão ou o erro. A maioria
das pessoas fala segundo as próprias ilusões estúpidas. Seus discursos são
errôneos, pois decidem acerca do me e do mal através das ilusões.
Devem – se as ilusões à mente instável que se
move e erra em função do meio. O Satori é a condição estável, normal e original
da mente. Nossa silhueta muda a cada instante como a chama que arde. Muda a
cada instante o conteúdo das concepções ou das categorias. Não há nada fixo. No
mundo visível, nada é idêntico, cada objeto é diferente. Tudo existe numa
relação de interdependência, sem a essência, sem a substância.
Durante o Zazen, o cérebro equivale a uma
janela através da qual sopra forte corrente de ar.
Sem nódoa.
Na água da
mente.
Permanece a
claridade da Lua.
Até as vagas
ali se quebram,
E se
transformam em luz pura.
Durante o
Zazen, o cérebro e a consciência se purificam. Exatamente como a água suja que
deixamos decantar num copo. A sujeira, progressivamente, se deposita no fundo e
a água se torna pura.
As pessoas
ignoram,
A jóia
preciosa.
E, no
entanto, cada qual a possui,
Profundamente
enterrada.
Na
consciência Alaya, o inconsciente.
Quando a consciência Alaya emerge e se
manifesta, aparece o espelho da sabedoria. O Satori do Zen Soto é, pois, o
redescobrimento do estado original esquecido, além de todas as observações de
que é suscetível a consciência saída do cérebro frontal; deixa de ser,
portanto, subjetivo, para ser totalmente objetivo.
O Zazen, que é a essência do ensino do Budha
e dos Patriarcas que lhe sucederam, permite a ultrapassagem de todas as
contradições; é um salto para além das categorias, é Hishiryo, o pensar não –
pensado, o pensar oriundo do não – pensamento. Todos os fenômenos que chegam
aqui e agora não se distinguem do Satori, constituem o verdadeiro Satori, a
verdadeira natureza de Budha. Na natureza de Budha não existe forma nem não –
forma.
Zazen tem um
gosto muito simples, leve, quase neutro.
Se dermos
gosto ao Zazen, fá – lo – emos vulgar.
É semelhante
ao algo céu.
E ao oceano
sem limites.
O Satori é
unificação, unidade, não-separação. O próprio Zazen é Satori. A ação é a
certificação do Satori. O Satori não é, pois, um acontecimento, mas um estado
permanente que subsiste até a morte. Entretanto, nem por isso devemos esperar
entrar no caixão para obtê-lo, será tarde demais. Para cada pessoa, o Satori é,
a um tempo, diferente e idêntico, como a Lua que se reflete tanto numa gota de
orvalho ou numa gota de xixi de cachorro quanto no oceano. Cumpre rejeitar
tudo, corpo e mente, para que o Zazen nos acompanhe; seguimo-lo sem fazer uso
da força, da consciência. Inconsciente, natural, automaticamente, nós nos
separamos das ilusões e obtemos o Satori. A postura do Zazen é o Satori.
O Zazen deve
arrastar o pensamento humano na direção do Budha, da ordem cósmica. A postura
do Zazen é semelhante à postura alongada do leão, ao rugido do dragão. É digna
do máximo respeito. Quer estejais sentado, de pé ou deitado, deveis ser
parecido com o rei dos leões, que permanece totalmente livre e forte, bravo e
sem medo; se outras pessoas vierem ver a vossa postura, esta deve ser tal que
elas não possam aproximar-se, tamanha a dignidade que dela emana.
Rejeitai,
num só golpe, todo pensamento e todo saber e, se fizerdes Shikantaza e
sentardes em Zazen abandonando tudo, pouco a pouco vos familiarizareis com o
Satori. Atingireis então o Caminho utilizando o corpo de modo apropriado,
especialmente se vos sentardes.
Os homens
que desejam o Satori oriundo de um conhecimento limitado e seletivo duvidam da
suprema sabedoria do Budha, nascida da consciência cósmica ilimitada. Assim, se
não acreditardes na sabedoria suprema, sereis prisioneiro do vosso eu
consciente e experimentareis sofrimentos. O coração deve deixar-se arrebatar
pela fé, confiar - se natural e inconscientemente à Mente Cósmica em vez de
agarrar-se ao eu objetivo. A mente contém todo o cosmo.
No mundo da
verdade, eu e os outros não somos separados. Lá não existe nenhum vestígio de
dualismo: fenômeno e essência mutuamente se interpenetram e se encaixam com
perfeição. Quando a mente não se detém em nada, a verdadeira mente aparece.
Na maioria
das meditações, seja mesmo em certas formas de Zen, os adeptos, mestres e
discípulos sempre se esforçam por destruir as ilusões e permanecer no não –
pensamento, por destruir a mente errônea e permanecer na não – mente, por matar
a atividade viva em si – mesmos e estagnarem – se num estado de não – vivo, de
não – atividade. Do mesmo jeito que sempre quiseram matar o aspecto e brincar
com o não – aspecto. Razão pela qual esse gênero de meditação sempre
enfraqueceu a maioria das escolas e seus praticantes.
O verdadeiro
Zazen é como o espelho que reflete todas as formas ou todos os fenômenos, e em
que a vossa mente se torna completamente clara. À medida que a vossa mente
soçobra, kontin vos precipita nos abismos do sono e, quando a vossa mente
flutuaa, sanran vos afunda nos abismos da confusão. Por isso mesmo, durante o
Zazen, acautelai-vos dos dois obstáculos, Kontin e Sanran, modorra e exaltação.
Mas se viveis no centro do palácio luminoso da tranqüilidade cósmica, sanran se
acalma por si – mesmo mercê dessa tranqüilidade perfeita. E a vossa mente se
acalma completamente, até em presença de sanran.
Da mesma
forma kontin se aquieta pela observação da vossa própria luz, e podeis
tornar-vos totalmente essa luz, ,esmo com a existência de kontin. Por
conseguinte, deveis observar kontin durante o Zazen e tornar-vos luminosos com
kontin; e deveis deter sanran durante o Zazen acalmar-vos com sanran. Como o
javali que descobriu uma mina de ouro ou como o vento que espalha ao longe o
perfume das flores olorosas, inconscientemente. Na verdadeira mente espiritual
não há ilusão.
Se pudermos
usufruir da verdadeira e perfeita liberdade da mente, até a nuvem branca e a
montanha azul se transformam em sombra em nosso pensamento único, e a bruma
sobre a floresta de pinheiros ou a neve que recobre a floresta de bambu também
se transformam em sombra em nosso pensamento único. Poderemos, então, pescar a
Lua e lavrar a nuvem.
Nesse
momento, como se realiza o mérito infinitamente grande do Zazen, podemos fazer entrar
o cosmo numa semente de papoula, ou o oceano num poro de pele, e mudar a terra
do inferno em terra do paraíso, inconsciente, natural, automaticamente.
Por favor,
meus caros discípulos considerem que a nossa vida é tão vã e efêmera quanto a
gota de orvalho sobre a relva de manhã, e que nosso destino é tão impermanente
quanto o sonho ou a ilusão, a bolha d’água ou a sombra.
Quando uma
gota de água cai no oceano,
Quando um
grão de pó cai na terra,
A gota de
água já não é uma gota d’água, torna-se oceano,
E o grão de
poeira já não é um grão de poeira, torna-se a terra inteira.
O verdadeiro
Zen não é correr para alcançar o Caminho, porém ser alcançado pelo Caminho. O
verdadeiro Zen é o despertar – metamorfose; não é um Satori pessoal. O Sutra do
Nirvana repete as palavras que Budha pronunciou quando obteve o Satori debaixo
da árvore Bodhi. “Eu e todos os seres vivos realizamos juntos o Caminho”.
Não
pratiques o Dharmma do Budha, não pratiqueis o Zazen em vosso benefício, com
finalidade utilitária, pelas honras, pelos méritos, para lograr favores,
milagres, mas apenas pelo Dharmma do Budha. Shikantaza é a mais alta, a maior,
a mais pura dimensão do corpo e do espírito do homem.
O Zen de
Dozgen não é a ambição de vir a ser mais do que humano, um ser especial, Budha
ou Deus. Tampouco é a esperança de ter a visão da vacuidade, ou de fazer
milagres. É voltar à condição normal da mente humana. A prática do Zazen traz a
paz interior. Além disso, o vosso Zazen influencia toda a humanidade, todo o
Cosmo. Zazen é um jogo, o maior de todos. Só os que o compreenderam continuam a
praticar.
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