domingo, 24 de março de 2013


Os princípios do Zazen do Mestre Dogen
Texto extraído de “O Anel do Caminho”
tradução de Taise Deshimaru

Deveis abandonar a prática fundada no conhecimento intelectual, correndo atrás das palavras e atendo-vos à letra. Deveis aprender a meia – volta que dirige a vossa luz para o interior, para iluminar-vos a verdadeira natureza. O corpo e o espírito se  apagarão por si mesmos e o vosso verdadeiro rosto aparecerá. Se quiserdes atingir a ipseidade, devereis praticá-la sem tardança.
Para o Zazen, convém um aposento silencioso. Comei e bebei com sobriedade. Não penseis: isso está bem, isso está mal. Não tomeis partido, nem a favor nem contra. Suspendei todos os movimentos do espírito consciente. Não julgueis pensamentos e perspectivas. Não alimenteis desejo algum de tornar – vos um Budha. Zazen não tem absolutamente nada que ver com a posição sentada ou com a posição deitada.
No lugar em que tendes o costume de sentar – vos, estendei uma esteira grossa e colocai uma almofada em cima. Sentai – vos na posição de lótus (Padmasana) ou de meio – lótus. Na posição de lótus, colocai primeiro o pé direito sobre a coxa esquerda, depois o pé esquerdo sobre a coxa direita. Na posição de meio – lótus, contentai – vos em colocar o pé esquerdo contra a coxa direita.
Não vos esqueçais de desapertar as roupas e o cinto, arrumai – vos convenientemente. Em seguida, colocai a mão direita sobre a perna esquerda e a mão esquerda, virada para o alto, sobre a direita; as extremidades dos polegares se tocam.
Sentai – vos bem aprumado, na atitude corporal correta, nem inclinado para a esquerda, nem inclinado para a direita, nem para frente, nem para trás. Certificai – vos de que as orelhas estão no mesmo plano dos ombros e que o nariz se acha na mesma linha vertical do umbigo.
Empurrai a língua para frente, contra o platô; a boca está fechada, os dentes se tocam. Os olhos devem permanecer sempre abertos, e deveis respirar suavemente pelo nariz. Quando tiverdes assumido a postura correta, respirai profundamente uma vez, inspirai e expirai. Inclinai o corpo para a direita e para a esquerda, e imobilizai – vos numa posição sentada estável.
O Zen está além de todo e qualquer dualismo; por sua simplicidade, dá acesso ao estado absoluto de sabedoria; e é aqui que a significação do Zazen assume toda a força: Shikantaza, apenas sentar-se, sentar-se e mais nada.
O Zen é a filosofia da gratuidade, do não – lucro; cada qual trabalha, na vida, para uma finalidade, por uma idéia, com um objetivo; cada qual quer dar e receber, mas só se atinge a vida espiritual mais alta do homem quando não há busca de lucro nem medo de perda.
Conservem as mãos abertas, toda a areia do deserto passará por entre elas; fechai – as e não conseguireis senão alguns grãos. A menor noção de guardar, de permanecer na consciência, é um obstáculo. A harmonia com o sistema cósmico é o abandono de tudo. Somos unidade e recebemos então a energia do cosmo.
Tudo indica que a educação baseada unicamente no conhecimento intelectual, nas religiões e morais tradicionais já não são capazes de fornecer soluções. Angustiados, desorientados, desequilibrados, os homens fogem, buscando os prazeres momentâneos e a facilidade, e assim se apartam da essência espiritual e do verdadeiro sentido da humanidade. As contradições e insatisfações são numerosas, rompeu – se o equilíbrio natural dos humanos porque eles já não sabem viver na condição normal do corpo e do espírito.
Estudar o Caminho do Budha é estudar – se a si – mesmo. Estudar –se a si – mesmo é esquecer –se de si – mesmo. Esquecer – se de si – mesmo é estar identificado com todas as existências do cosmos.
Estar identificado com todas as existências do cosmo é despojar – se do corpo e da mente. Despojar – se do corpo e da mente é despojar - se do seu eu.
Qual é a essência de todas as religiões, de todas as filosofias? Compreender – se a si – mesmo. Não uma compreensão lograda unicamente através da imaginação, da parte frontal, intelectual do cérebro, mas uma compreensão lograda através do corpo. Vivemos graças à energia do cosmos. Durante o Zazen, nossa consciência e nosso corpo se harmonizam com o sistema cósmico, graças à respiração, aos cinco sentidos e à consciência, que se acalmam, perdem as ansiedades, os temores, natural, automática, inconscientemente. É a verdadeira religião.
Essa postura exata influi na consciência, nas sensações, nos pensamentos. Zazen é a volta às condições normais, à saúde do corpo. Será difícil associar ao Zazen um corpo em mau estado. Zazen é o barômetro da saúde e da mente.
As doenças aparecem sempre a partir das deformações do corpo e da mente. Graças à postura do Zazen localizamos nossas deformações e nossos pontos fracos. Zazen significa olhar para nós mesmos, compreender o nosso ego, o nosso karma e os maus hábitos do corpo e da mente. Quando praticardes o Zazen mantém de uma psotura justa. Do inconsciente surgem desejos e pensamentos. Assim podeis observar – vos a vós mesmos. Se sentirdes pontos dolorosos pelo corpo ou mesmo um desequilíbrio entre o lado direito e o lado esquerdo, essa deformação pode vir a ser a causa de uma futura doença.
Quase todas as religiões procuram o controle por meio do espiritual. Mas se quiserdes controlar o espírito pelo espírito complicar-nos-emos. Querer controlar o espírito pela vontade é como querer apagar o fogo com o fogo.
A educação Zen não é cientifica. A educação Zen está além da ciência, além da filosofia. O pensamento Zen pratica-se com o corpo. E inclui as contradições. No Zen, não pensamos no problema da existência ou da não – existência de uma substancia. Propomos os problemas seguintes: Que fazer? |Como existir aqui e agora?
Dizia Mestre Kodo Sawaki que conduzir a nossa vida é como andar de bicicleta. Uma boa prática faz – se necessária. Se o corpo e o cérebro estiverem rígidos, não poderemos conduzir; não poderemos vencer a dificuldade. É preciso pedalar sem parar. Se não pedalarmos, não avançaremos, se executarmos uma manobra errada, cairemos.
Precisamos utilizar o cérebro co mo utilizamos a bicicleta. Agora, agir de tal maneira, cada momento é diferente. O aqui e o agora diferem a cada instante, como o tempo que passa. Por isso mesmo, o cérebro não deve permanecer unilateral. Se só decidirmos segundo nossas próprias categorias, o cérebro não evoluirá e não poderemos criar sabedoria.
Da pergunta: Como somos? Devemos passar à pergunta: Como devemos ser em nossa vida real? Nesse momento, a alta verdade da prática da fé e da religião pode assumir numerosas dimensões.
É de suma importância entrar na prática e na experiência. No Zen, devemos rejeitar até os juízos sobre o bem e o mal. O bem e o mal não são mais que o verso e o reverso da mesma medalha. Se nos apegarmos a um juízo, ele se fixará e assumirá uma substancia própria. Por isso mesmo, no Zen, não fazemos senão negar, sem parar, todas as coisas.
O Caminho do Meio, é o fato de se controlar, de equilibrar – se.
Nas religiões modernas, só nos concentramos nos ensinamentos, nos Sutras, no estudo, na teologia. Esquecemos a prática, assim como a fé. Daí, que o ensinamento sem a prática e sem a fé não pode dar alugar ao despertar. No interior do espírito das pessoas, as vagas e o vento estão sempre em movimento.
O ser humano cria suas próprias ilusões. A perseguição às sombras da consciência engendra a ilusão ou o erro. A maioria das pessoas fala segundo as próprias ilusões estúpidas. Seus discursos são errôneos, pois decidem acerca do me e do mal através das ilusões.
Devem – se as ilusões à mente instável que se move e erra em função do meio. O Satori é a condição estável, normal e original da mente. Nossa silhueta muda a cada instante como a chama que arde. Muda a cada instante o conteúdo das concepções ou das categorias. Não há nada fixo. No mundo visível, nada é idêntico, cada objeto é diferente. Tudo existe numa relação de interdependência, sem a essência, sem a substância.
Durante o Zazen, o cérebro equivale a uma janela através da qual sopra forte corrente de ar.
Sem nódoa.
Na água da mente.
Permanece a claridade da Lua.
Até as vagas ali se quebram,
E se transformam em luz pura.

Durante o Zazen, o cérebro e a consciência se purificam. Exatamente como a água suja que deixamos decantar num copo. A sujeira, progressivamente, se deposita no fundo e a água se torna pura.

As pessoas ignoram,
A jóia preciosa.
E, no entanto, cada qual a possui,
Profundamente enterrada.
Na consciência Alaya, o inconsciente.

Quando a consciência Alaya emerge e se manifesta, aparece o espelho da sabedoria. O Satori do Zen Soto é, pois, o redescobrimento do estado original esquecido, além de todas as observações de que é suscetível a consciência saída do cérebro frontal; deixa de ser, portanto, subjetivo, para ser totalmente objetivo.
O Zazen, que é a essência do ensino do Budha e dos Patriarcas que lhe sucederam, permite a ultrapassagem de todas as contradições; é um salto para além das categorias, é Hishiryo, o pensar não – pensado, o pensar oriundo do não – pensamento. Todos os fenômenos que chegam aqui e agora não se distinguem do Satori, constituem o verdadeiro Satori, a verdadeira natureza de Budha. Na natureza de Budha não existe forma nem não – forma.
Zazen tem um gosto muito simples, leve, quase neutro.
Se dermos gosto ao Zazen, fá – lo – emos vulgar.
É semelhante ao algo céu.
E ao oceano sem limites.

O Satori é unificação, unidade, não-separação. O próprio Zazen é Satori. A ação é a certificação do Satori. O Satori não é, pois, um acontecimento, mas um estado permanente que subsiste até a morte. Entretanto, nem por isso devemos esperar entrar no caixão para obtê-lo, será tarde demais. Para cada pessoa, o Satori é, a um tempo, diferente e idêntico, como a Lua que se reflete tanto numa gota de orvalho ou numa gota de xixi de cachorro quanto no oceano. Cumpre rejeitar tudo, corpo e mente, para que o Zazen nos acompanhe; seguimo-lo sem fazer uso da força, da consciência. Inconsciente, natural, automaticamente, nós nos separamos das ilusões e obtemos o Satori. A postura do Zazen é o Satori.

O Zazen deve arrastar o pensamento humano na direção do Budha, da ordem cósmica. A postura do Zazen é semelhante à postura alongada do leão, ao rugido do dragão. É digna do máximo respeito. Quer estejais sentado, de pé ou deitado, deveis ser parecido com o rei dos leões, que permanece totalmente livre e forte, bravo e sem medo; se outras pessoas vierem ver a vossa postura, esta deve ser tal que elas não possam aproximar-se, tamanha a dignidade que dela emana.

Rejeitai, num só golpe, todo pensamento e todo saber e, se fizerdes Shikantaza e sentardes em Zazen abandonando tudo, pouco a pouco vos familiarizareis com o Satori. Atingireis então o Caminho utilizando o corpo de modo apropriado, especialmente se vos sentardes.

Os homens que desejam o Satori oriundo de um conhecimento limitado e seletivo duvidam da suprema sabedoria do Budha, nascida da consciência cósmica ilimitada. Assim, se não acreditardes na sabedoria suprema, sereis prisioneiro do vosso eu consciente e experimentareis sofrimentos. O coração deve deixar-se arrebatar pela fé, confiar - se natural e inconscientemente à Mente Cósmica em vez de agarrar-se ao eu objetivo. A mente contém todo o cosmo.

No mundo da verdade, eu e os outros não somos separados. Lá não existe nenhum vestígio de dualismo: fenômeno e essência mutuamente se interpenetram e se encaixam com perfeição. Quando a mente não se detém em nada, a verdadeira mente aparece.

Na maioria das meditações, seja mesmo em certas formas de Zen, os adeptos, mestres e discípulos sempre se esforçam por destruir as ilusões e permanecer no não – pensamento, por destruir a mente errônea e permanecer na não – mente, por matar a atividade viva em si – mesmos e estagnarem – se num estado de não – vivo, de não – atividade. Do mesmo jeito que sempre quiseram matar o aspecto e brincar com o não – aspecto. Razão pela qual esse gênero de meditação sempre enfraqueceu a maioria das escolas e seus praticantes.

O verdadeiro Zazen é como o espelho que reflete todas as formas ou todos os fenômenos, e em que a vossa mente se torna completamente clara. À medida que a vossa mente soçobra, kontin vos precipita nos abismos do sono e, quando a vossa mente flutuaa, sanran vos afunda nos abismos da confusão. Por isso mesmo, durante o Zazen, acautelai-vos dos dois obstáculos, Kontin e Sanran, modorra e exaltação. Mas se viveis no centro do palácio luminoso da tranqüilidade cósmica, sanran se acalma por si – mesmo mercê dessa tranqüilidade perfeita. E a vossa mente se acalma completamente, até em presença de sanran.

Da mesma forma kontin se aquieta pela observação da vossa própria luz, e podeis tornar-vos totalmente essa luz, ,esmo com a existência de kontin. Por conseguinte, deveis observar kontin durante o Zazen e tornar-vos luminosos com kontin; e deveis deter sanran durante o Zazen acalmar-vos com sanran. Como o javali que descobriu uma mina de ouro ou como o vento que espalha ao longe o perfume das flores olorosas, inconscientemente. Na verdadeira mente espiritual não há ilusão.

Se pudermos usufruir da verdadeira e perfeita liberdade da mente, até a nuvem branca e a montanha azul se transformam em sombra em nosso pensamento único, e a bruma sobre a floresta de pinheiros ou a neve que recobre a floresta de bambu também se transformam em sombra em nosso pensamento único. Poderemos, então, pescar a Lua e lavrar a nuvem.

Nesse momento, como se realiza o mérito infinitamente grande do Zazen, podemos fazer entrar o cosmo numa semente de papoula, ou o oceano num poro de pele, e mudar a terra do inferno em terra do paraíso, inconsciente, natural, automaticamente.

Por favor, meus caros discípulos considerem que a nossa vida é tão vã e efêmera quanto a gota de orvalho sobre a relva de manhã, e que nosso destino é tão impermanente quanto o sonho ou a ilusão, a bolha d’água ou a sombra.

Quando uma gota de água cai no oceano,
Quando um grão de pó cai na terra,
A gota de água já não é uma gota d’água, torna-se oceano,
E o grão de poeira já não é um grão de poeira, torna-se a terra inteira.

O verdadeiro Zen não é correr para alcançar o Caminho, porém ser alcançado pelo Caminho. O verdadeiro Zen é o despertar – metamorfose; não é um Satori pessoal. O Sutra do Nirvana repete as palavras que Budha pronunciou quando obteve o Satori debaixo da árvore Bodhi. “Eu e todos os seres vivos realizamos juntos o Caminho”.

Não pratiques o Dharmma do Budha, não pratiqueis o Zazen em vosso benefício, com finalidade utilitária, pelas honras, pelos méritos, para lograr favores, milagres, mas apenas pelo Dharmma do Budha. Shikantaza é a mais alta, a maior, a mais pura dimensão do corpo e do espírito do homem.

O Zen de Dozgen não é a ambição de vir a ser mais do que humano, um ser especial, Budha ou Deus. Tampouco é a esperança de ter a visão da vacuidade, ou de fazer milagres. É voltar à condição normal da mente humana. A prática do Zazen traz a paz interior. Além disso, o vosso Zazen influencia toda a humanidade, todo o Cosmo. Zazen é um jogo, o maior de todos. Só os que o compreenderam continuam a praticar.

Nenhum comentário:

Postar um comentário